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A coragem de Chatô. Ou: as vantagens do financiamento público

3 de dezembro de 2015 | Por: Alexandre Postigo

chato 11 editadaO livro ‘Chatô, o Rei do Brasil’, de Fernando Moraes, era um filme esperando para ser produzido. Pela perfeita reconstituição do período, de personagens e situações feita pelo autor, sim, mas também pelo protagonista que apresenta: Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo. Jornalista e primeiro magnata das comunicações do Brasil, Chatô, como era conhecido, esteve envolvido em praticamente tudo de relevante que acontecia no País entre 1930 e 1960, além de ter fundado os Diários Associados, a TV Tupi e até o Museu de Arte de São Paulo, o MASP.

A coisa estava fácil, portanto. Era apenas seguir a obra, parágrafo por parágrafo. Mas, Guilherme Fontes, que entrega agora a versão cinematográfica da biografia, ‘Chatô, O Rei do Brasil’, escolheu o caminho mais difícil: sem nunca perder de vista a fonte original, ele acrescenta algo de surrealismo e, alguém já disso isso, até tropicalismo em sua obra.

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No filme, como no livro, Chatô é apresentando de início vestido como índio em um banquete antropofágico nas praias brasileiras, falando com a câmara. A estranheza se intensifica ao longo do filme, com a alternância dos episódios de vida do jornalista – em seu leito de morte; menino, “aprendendo” a não ser gago na marra pelo pai; conspirando com Getúlio Vargas e sendo perseguido posteriormente pelo ditador etc – com uma espécie de sonho (ou seria o pós-morte?) onde é julgado no que parece ser um programa de auditório. As mulheres que amou, e traiu, os jornalistas que explorou, e outros personagens de sua trajetória são as testemunhas, Getúlio Vargas é o advogado de ‘defesa’ e uma espécie de Chacrinha (na verdade o próprio Guilherme Fontes) comanda o ‘picadeiro’.

Essa estrutura do roteiro, de idas e vindas, inclusive cronológicas, que lembra a do filme All That Jazz – também uma cinebiografia, mas do escritor, diretor e coreógrafo Bob Fosse -, contribui para tornar Chatô difícil para quem não conhece minimamente a história do personagem. Em compensação, torna a obra de Fontes original, no sentido de não apenas emular o livro de Fernando Moraes, mas tentar, e conseguir, ter voz própria, se tornar obra independente.

Coincidência ou não, Fosse e Chatô compartilham algumas características: incapacidade crônica de ser fiel às mulheres, sucesso e reconhecimento em seus respectivos campos e um autoritarismo e falta de escrúpulos absolutos no trato com as outras pessoas.

Ousado na estrutura, Fontes da mesma forma é corajoso em sua crítica a esse autoritarismo, que é do magnata das comunicações Chatô, mas que foi aprendida e reproduzida por outros: Marinhos, Frias, Mesquitas e que tais, todos envolvidos, como o herói do filme, em conspirações políticas e golpes, fatos atestados pela historiografia.
Se Chatô, como mostra o filme, apoiou a revolução Tenentista apenas depois que teve de Getúlio o compromisso de que seu jornal seria sustentado financeiramente pelo novo governo, Marinho, como os Frias e os Mesquitas, saudaram o Golpe de 1964 como a volta da democracia (sim, é verdade!).

Financiamento público ou privado?

E aqui, com esse exemplo, chegamos ao problema do financiamento do filme, que rendeu atraso de 20 anos para a estreia e processos ao diretor.

Fontes, como se sabe, optou por financiar seu filme com a ajuda das leis de incentivo vigentes. Poderia ele falar de forma tão direta sobre as vicissitudes da mídia nativa se o financiamento não fosse público? A carta de suicídio de Getúlio teria sido lida quase na íntegra no filme, como foi, se o financiamento fosse, por exemplo, da Globo Filmes?

A pergunta não é descabida já que, como se sabe, Marinho e O Globo faziam parte da imprensa que, naquela época, trabalhava diuturnamente pela deposição de Vargas.

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Na verdade, a resposta para a pergunta acima já existe. O filme ‘Getúlio’, de 2014, dirigido por João Jardim e com dinheiro da Globo Filmes, se propõe a mostrar os últimos momentos do ditador. Afora, a edição pouco inovadora e os diálogos previsíveis, que dão caráter novelesco ao filme, o que choca é que a crise que leva ao suicídio, no longa, não parece ter protagonistas. As questões políticas envolvidas na morte, as forças que à época se digladiavam, nada disso é explicitado. Coisa rara: um filme sobre um político que é apolítico.

Tendo em vista que a Globo Filmes é quem paga pela produção, essa ‘escolha’ do diretor é previsível. O Globo, o jornal, estava tão envolvido na deposição do presidente, que os carros de reportagem foram incendiados pelo povo enfurecido depois que Getúlio, não aguentando a pressão, se matou. Sintomaticamente, no filme de João Jardim os trechos mais interessantes da carta de suicídio foram editados. Ou seja, o diretor teve o bom senso (covardia?) de não chamar os chefes de golpistas mancomunados com forças internacionais e ‘espoliadores do povo’.

Em uma época em que temos um aparente fortalecimento do conservadorismo nacional e quando até uma presidente eleita pelas esquerdas se rende, em sua política econômica, às diretrizes neoliberais, é importante reafirmar algumas vantagens do Estado. Quando financia filmes, por exemplo, ele permite que diretores dispostos exerçam a coragem em sua plenitude, como fica claro em Chatô, uma obra de arte moderna do cinema brasileiro.

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