A Sacalina de Tchékhov e as masmorras brasileiras

20 de janeiro de 2019

Contundente denúncia de uma colônia penal czarista do século XIX escrita pelo autor russo remete ao sistema prisional brasileiro do século XXI

ilha de sacalinaAs últimas eleições presidenciais deixaram clara uma coisa: boa parte da sociedade brasileira não dá a menor pelota para os direitos humanos. Ora explicitamente ora implicitamente, essa parcela aposta na opressão e exclusão para resolver o problema da criminalidade, não considerando, claro, suas origens sociais e, quem sabe, maneiras mais efetivas e inteligentes de abordar o problema.

A mesma pouca inteligência acometeu o regime czarista do século XIX, que em 1859 construiu uma colônia agrícola e penal para criminosos e presos políticos na Rússia.  É disso que trata A ilha de Sacalina, relato de Anton Tchékhov (1860 – 1904), inédito no Brasil, publicado pela editora Todavia, que denuncia de forma contundente o sistema prisional russo àquele tempo, uma espécie de sucursal do inferno cercado de frio, água e desumanidade por todos os lados.

Em 1890, o então jovem médico Tchékhov decide fechar temporariamente seu consultório. O motivo? Empreender uma longa viagem até os confins da Rússia a fim de documentar as terríveis condições de vida das pessoas condenadas a trabalhos forçados na ilha-presídio de Sacalina, localizada no longínquo leste do país, a 9 mil quilômetros de Moscou. Nessa jornada extenuante, ele se depara com uma série de abusos: habitações precárias, fome, miséria, frio.

Nos três meses em que passou na colônia, Tchékhov teve acesso aos detentos e se utilizou do método mais rigoroso para fazer um levantamento da realidade vivida pelos moradores: um recenseamento. Em uma das correspondências endereçadas ao seu editor, Suvórin, ele dá dimensão desse trabalho ao frisar que percorrera todos os povoados e falara com todos os moradores, já tendo registrado cerca de 10 mil pessoas, concluindo “Em Sacalina não há forçado ou colono que não tenha falado comigo”.

Em outra correspondência ao seu editor, Tchékhov revela que por trás dos horrores de Sacalina havia um carrasco coletivo: “deixamos apodrecer milhões de pessoas nas prisões, deixamos apodrecer à toa, sem razão, de maneira bárbara (…) transmitimos sífilis, corrompemos, multiplicamos os criminosos”. Na sequência, tece uma tácita crítica à toda Europa culta que imputa toda a culpa “aos carcereiros de nariz vermelho” e se exime de responsabilidades: “não temos nada a ver com esse assunto, isso não nos interessa”, escreve.

A analogia com a sociedade brasileira nesse sentido, como em muitos outros, no que diz respeito à Sacalina, é inevitável. A ideia colocada em prática no século XIX ainda seduz muitos cidadãos brasileiros em pleno segundo milênio. Basta ler os comentários feitos nas redes sociais quando se discute sistema prisional por aqui. Como na Rússia czarista, insistimos em isolar o problema, excluí-lo de nosso campo de visão ao invés de resolvê-lo. Quando legitimamos a violência, a superlotação, as condições de vida precárias nas prisões com a nossa indiferença, damos longas braçadas rumo à Ilha de Sacalina.

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