Nível Secreto sabe o segredo para uma boa adaptação

13 de janeiro de 2025

 

Alguém transforma em filme ou série uma HQ ou um game. Pronto, são abertas as portas do inferno nas redes sociais e já começa o chororô interminável. “Mas não está fiel ao meu gibizinho! A ponta da capa do meu herói tem um tom de vermelho diferente!”

Exageros retóricos à parte, você sabe que é assim. Inclusive, há casos do hate contra uma adaptação ser tão intenso que inviabiliza projetos que poderiam, quem sabe, trazer frescor àquele personagem ou universo.

Bom, essa praga não foi, aparentemente, conjurada contra Nível Secreto, série de animação disponível já inteira no Prime Video. E olha que a série – mais uma belezinha de Tim Miller, criador da fantástica animação Love, Death & Robots – consegue evitar a choradeira nas redes mesmo adotando liberdades gigantes em relação à chamada ‘obra original’, no caso, conhecidos jogos de videogames.

Os 15 episódios da série antológica referenciam (vamos usar essa palavra, mais leve, em vez de ‘adaptam’) os jogos Armored Core, Concord, Crossfire, Dungeons & Dragons, Exodus, Honor of Kings, Mega Man, New World: Aeternum, PAC-MAN (como assim?!!), Sifu, Spelunky, The Outer Worlds, Unreal Tournament, Warhammer 40,000 e vários títulos da PlayStation Studios.

Posso dizer que não conheço nem metade desses games, tendo um conhecimento superficial de outros e bom de poucos. Mesmo assim, milagre: esse conhecimento prévio passa longe de ser necessário já que Miller usa os mundos desses games apenas como pano de fundo, o ambiente onde se desenrolam histórias em grande medida originais.

Isso não quer dizer que saber algo dos games não aumente o prazer ao assistir os episódios. Ao contrário, ter esse conhecimento garante a leitura de cada uma das narrativas em outros níveis, o que é sempre um indício de que se está diante de uma boa obra de arte.

Assim, por exemplo, PAC-MAN: Círculo, o episódio seis, apresenta um ambiente bem distante do labirinto tosco do famoso game dos anos 1980, mas se apropria e leva às últimas consequências uma ideia chave, e violenta, por trás do prazer de milhares de crianças que, inocentemente, se divertiam com o game naquela época: comer ou ser comido, matar ou morrer. A cena final do episódio, aliás, é particularmente enfática nesse sentido.

Ou seja, distante de uma retratação fiel do jogo, de resto praticamente impossível de ser feita de forma eficiente, Miller tem sucesso, e evita as críticas, ao adaptar o chamado ‘espírito da obra’, a ideia fundamental ou o que torna determinado jogo especial.

Essa forma de adaptar conteúdos tão queridos do público, ainda mais de um tão ranheta como os amantes de games, se espalha, em maior ou menor medida, por todos os episódios, o que se mostra a melhor escolha.

Isso fica ainda mais claro no episódio três da antologia, New World: O Único e Futuro Rei, que se inspira no jogo também chamado New World. O enredo inicial da animação é como o jogo: um rei conquistador naufraga em uma terra misteriosa, chamada Aeternum, com muita disposição para conquistar todos os outros reis.

Começa igual, mas vai muito além. Na animação, essa disposição ególatra do rei encalhado nessa nova terra, dublado de maneira hilária por Arnold Schwarzenegger, de conquistar glórias militares, aos poucos dá lugar a preocupações e objetivos mais solidários. A lógica simples dos games – vença o inimigo! – se complexifica, extrapola os games (ainda bem!) e se torna outra coisa, mais humana e dramática. Algo com que as pessoas podem se relacionar e emocionar. Não é isso que deveria fazer toda forma de arte?

Uma atração a mais nesse episódio, que traz um quentinho no coração para quem entende a referência, é o personagem dublado por Schwarzenegger reproduzir os trajetos com a espada do personagem mais famoso interpretado pelo ator, Conan, o Bárbaro, no filme de mesmo nome dirigido por John Milius.

Muitos outros episódios merecem destaque, como o primeiro, Dungeons & Dragons: O Berço da Rainha, que deixa a gente com vontade de quero mais, quem sabe um longa-metragem só dele; e o sétimo, Crossfire: Bom Conflito, em que, como na vida, todo se dizem boas pessoas, mesmo quem age de maneira pouco digna e extremamente violenta.

A regra geral é clara. Os melhores episódios são os que vão além do game, adaptando apenas conceitos e ideias chave de cada game. Os piores, são os que tentam ser mais fiéis à obra fonte, como o fandom raivoso nas redes exige muitas vezes.

Nível Secreto, assim, nos dá, aos fãs de quadrinhos, filmes e séries, muita coisa para pensar sobre o que, afinal, é uma boa adaptação.

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