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‘As últimas testemunhas’, um desafio à indiferença de nosso tempo

14 de janeiro de 2019 | Por: Gabriela Potti

downloadImagine histórias tão aterradoras que não temos coragem de contar diante de uma criança. Agora pense que você sobreviveu a esses horrores na infância e hoje, adulto, revive uma das páginas mais tristes da trajetória da humanidade numa narrativa fascinante e brutal de tudo por que passou. Por fim, multiplique cada testemunho por cem e você terá uma noção do impacto que as 271 páginas do livro ‘As últimas testemunhas’, de Svetlana Aleksiévitch, provocam no leitor.

Entre 1978 e 2004, a jornalista e escritora ucraniana vencedora do Nobel de Literatura de 2015 coletou uma centena de depoimentos de sobreviventes da Segunda Guerra Mundial na antiga União Soviética e, a partir de testemunhos de adultos que à época eram crianças, compôs um mosaico do inferno vivido por elas nas mãos dos nazistas.

O mais sangrento conflito mundial matou quase 13 milhões de crianças em todo o mundo, somente na Bielorrússia havia aproximadamente 27 mil delas em orfanatos. Contudo, para além dos números, o livro busca resgatar fragmentos da hostil realidade que se abateu sobre a vida daqueles pequenos seres desde o primeiro dia de guerra.

O que fazer quando morte, fome, frio, desamparo e sofrimento transpõem as fronteiras da vida adulta e vêm para bater à porta de meninos, meninas, pré-adolescentes, bebês e até recém-nascidos? Foi assim com os pequenos que testemunharam o fuzilamento de seus pais, irmãos e avós, os que foram enviados para campos de concentração, os torturados, famintos, enfim, seres humanos que se viram obrigados a adentrar na vida adulta ao primeiro estrondo anunciando a guerra.

A luta pela sobrevivência persiste tanto nas páginas que narram o ato desesperado da garota que, morrendo de sede, rasteja até um balde de urina; quanto da criança de seis anos que sobrevive a dez ferimentos à bala. E, não raro, revela-se uma batalha longa e penosa. Foi assim com a menina de dez anos que teve que fazer uma escolha dolorosa para sobreviver aos 900 dias de cerco nazista a Leningrado. “Você não imagina como parece longo um dia para uma pessoa com fome”, dizia ela.  Pela voz dessas crianças, o livro também traz à tona o sofrimento dos adultos, como o da mãe que não conseguiu chegar a tempo de evitar que a filha de três anos morresse embalando uma granada como se fosse uma boneca.

Ao mesmo tempo em que evocam todas as dores da guerra, essas memórias por vezes resgatam a beleza em meio ao caos na atitude generosa de famílias, camponeses, partisans, professores e soldados soviéticos que protegiam, abrigavam e cuidavam dessas crianças, como lembra a hoje tipógrafa Emma Liévina: “Que época terrível, mas que pessoas formidáveis. Me surpreendo pensando em como éramos na época. Como acreditávamos! Não quero esquecer isso…”

Desse mosaico de histórias, lembranças e memórias, Svetlana Aleksiévitch tece uma escrita ímpar na literatura mundial. Ao mesmo tempo em que entrega ao leitor um trabalho jornalístico primoroso desenvolvido a partir da observação da realidade, compõe uma obra de incomparável qualidade narrativa que dá unidade às múltiplas vozes das crianças sobreviventes da guerra.

Em tempos em que a negação aos livros, à razão e à história atinge um patamar assustador entre muitas pessoas da sociedade brasileira, que minimizam os horrores praticados por Hitler e seus asseclas chegando, em casos mais extremos, até a comungar de tais ideias, o livro ‘As últimas testemunhas’ é um balde de água fria em qualquer discurso pronto forjado nas redes sociais. Da primeira à última página o leitor é colocado diante da natureza desumana e grotesca do nazismo, de modo que é impossível ao mais indiferente dos seres humanos sair ileso dessa leitura.

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