House of Cards é a melhor série sobre política? Não mesmo!

28 de abril de 2016

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“House of Cards é a melhor série sobre política já feita!” Para além do fato de que a frase é absoluta demais para uma já longeva história da TV mundial, a afirmação está errada pela singela razão de que House of Cards não é, exatamente, sobre política. A série trata, como é óbvio, sobre poder e o que as pessoas estão dispostas a fazer para obtê-lo. A política, assim, é apenas pano de fundo, incidental, o ambiente no qual Frank Underwood pratica suas estripulias em busca de poder. Poderia cometê-las em uma grande empresa, uma escola ou mesmo na Escócia medieval, como demonstrou, aliás, Shakespeare, em seu Macbeth, tratando do mesmo assunto, a busca, a qualquer preço, do poder.

Se House of Cards não aborda, a não ser para ilustrar as trapaças de Frank, escolhas políticas e questões públicas e muito menos as diferenças entre democratas e republicanos, direita e esquerda, liberais e conservadores, há uma série que o fazia em profusão: Boston Legal.

Conhecida no Brasil como Justiça sem Limites, a série, que teve cinco temporadas, foi ao ar pela primeira vez pelo canal ABC em 3 de outubro de 2004.

Uma forma pobre de resumi-la seria dizer que se trata do dia a dia de uma equipe de advogados de uma grande empresa advocatícia de Boston, a Crane, Pool & Schmidt. David E. Kelley, criador da série (e de outras pérolas da TV, como Picket Fences, Chicago Hope e Boston Public), no entanto, coalhou os episódios de personagens complexos, diálogos inteligentes e rápidos, com um ‘q’ de Frank Capra, e, principalmente, de discussões políticas candentes.

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Alan Shore (James Spader) prefere os casos estranhos.

Na trama, Alan Shore, vivido de forma intensa por James Spader, faz um dos advogados da firma. Brilhante, ele não tem escrúpulos em usar todos os recursos, inclusive mentiras deslavadas, intimidação e chantagens para ganhar seus casos. Por outro lado, tem preferência por defender no tribunal os enganados, os injustiçados, os esquisitos, os problemáticos, aqueles que não se adequam à sociedade, que aparentam ter algum parafuso solto.

A motivação para isso, se de início parece ser o desafio de ganhar casos que todos consideram impossíveis, aos poucos, conforme a série evolui, fica mais clara: Shore, como seus clientes, não está totalmente integrado à sociedade. Inteligente demais, articulado demais, ele, no entanto, não consegue verdadeiramente se ligar às pessoas, mesmo que esteja, muitas vezes, acompanhado de belas mulheres.

Se com o resto do mundo Shore mantém relações frágeis e pouco profundas, não o faz apenas com Denny Crane, seu melhor amigo e sócio fundador da empresa. Vivido por William Shatner, que visivelmente se doa para o papel, Crane é outra figura: conservador e republicano até o nível folclórico, comporta-se como um louco, assediando mulheres muito além do politicamente correto, atirando nas pessoas, inclusive clientes, e dizendo as coisas mais absurdas para os incautos que passam pela sua frente.

Durante um dos casos, em que a Crane, Poole and Schmidt havia sido contratada por uma empresa de planos de saúde que superfaturava medicamentos para idosos, Denny soltou a seguinte pérola no tribunal: “Odeio velhos, sempre odiei. São uns bebês. Por isso, metade deles usa fraldas. Os idosos são responsáveis por uma grande porcentagem da riqueza do país. Eles atuam na maioria das 500 maiores empresas. Ele movimentam a guerra. E a maioria deles é capaz e saudável. O que fazem? Aposentam-se aos 65 anos e sugam nossos recursos. Temos uma enorme pobreza nesse país. Não podemos educar nossos filhos em grande parte porque esses fortões e inteligentes aposentados estão vivendo da Previdência. Por que não cobrar mais deles?”

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Denny Crane, louco, mas nunca perde uma causa.

Advogado conhecido nacionalmente (na série ele é visto até sendo entrevistado por Larry King), Denny atribui à doença da vaca louca (ou ao Mal de Alzheimer, não fica claro) seu comportamento. Egocêntrico ao extremo – afirma nunca ter perdido um caso -, fala de si mesmo ao estilo do Pelé, na terceira pessoa.

É em meio a esses e outros personagens meio loucos e geniais – como um advogado que de tão tímido inventa uma personalidade alternativa e passa a se comportar como mulher – que David E. Kelley discute problemas sociais e políticos reais, principalmente para o público americano: o sistema de saúde dos EUA, baseado apenas na livre concorrência e suas consequências, algumas nefastas, para quem não tem dinheiro; se Bush inventou motivos para entrar em Guerra contra o Iraque; até que ponto sacrificar liberdades civis para prevenir ataques terroristas; pena de morte; a condição e direitos dos imigrantes ilegais no país; os direitos da mulher; aborto; pobreza, entre muitos outros.

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Shore e Denny, dois inseparáveis flamingos.

Mesmo que muitas vezes deixe claro, por meio de personagens mais ‘liberais’ (no sentido americano do termo, ou seja, quase um socialista) como Alan Shore, certa tendência democrata, David E. Kelley parece empenhado em apresentar todos os lados de cada questão política e social abordada nos episódios. O fato de a série se passar em tribunais contribui para isso, já que ao longo do processo cada lado pode apresentar sua tese, seus argumentos, e esperar o veredito do júri, na série, e do telespectador, no mundo real.

A meta, ao que parece, como é dito explicitamente em determinado ponto da série, é despertar os americanos, mais preocupados com a última estrela pop que sofreu overdose, para a necessidade de fazer política.

Mesmo assim, mesmo sendo a série um grande fórum de discussão de temas muitas vezes áridos, Kelley faz com que seu Boston Legal seja, graças ao bom humor e a diálogos afiados, como um passeio no parque na companhia de pessoas inteligentes e articuladas. Agradável, leve e instrutivo.

Quando se compara isso ao clima político atual no Brasil e mesmo nos EUA, com Donald Trump e assemelhados, de ódio e falta de reflexão, o sentimento é apenas de desânimo.

PS: The West Wing (Nos Bastidores do Poder, no Brasil) é outra excelente série sobre, aí sim, política. Evitei comentar sobre ela aqui pois merece um post específico, a ser feito, espero, em um futuro próximo.

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