A realidade se traduz à percepção humana apenas como versões, parece dizer ‘Hyde’, livro de Daniel Levine que faz uma releitura de O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Se no clássico texto gótico, publicado em 1886, fica óbvio para alguns identificar na contraparte do Dr. Jekyll o mal encarnado, neste novo, publicado pela Editora Record, o autor quer nos fazer crer que as coisas podem não ser exatamente como narradas originalmente.
Pontos pouco claros ou apenas sugeridos na curta narrativa de Stevenson ganham nova luz e entendimento quando Levine desloca o ponto de vista narrativo do Dr. Jekyll e do seu amigo advogado, naturalmente parciais contra o ‘monstro’, para o de Hyde, que ganha voz e pode, enfim, explicar a razão de suas ações, mesmo as mais temerárias e malignas.
Assassinatos e agressões aparentemente gratuitos e rapidamente atribuídos à natureza indócil e animalesca de Hyde pelos narradores da versão oficial, têm, desse modo, novas significações e explicações.
Além disso, a triste história de Hyde acaba revelando a personalidade de sua contraparte, o Dr. Jekyll, com quem divide a consciência e de quem conhece os segredos mais íntimos. É hora de questionar esse que se tornou paradigma de bondade mas que, estranhamente, cria e alimenta uma versão alternativa de si mesmo (adormecida?) para poder usufruir de prazeres reprimidos por sua educação vitoriana.
Ao mesmo tempo, usando milimetricamente os ganchos e hiatos narrativos deixados por Stevenson, o que denota o respeito pelo clássico, Luceno consegue, ainda, desenvolver uma história de mistério que envolve mulheres mortas e o que pode ser uma cilada para Hyde e o ‘bom’ Dr. Jekyll, a quem está irremediavelmente ligado.
A brincadeira com pontos de vista e versões da ‘verdade’ rende um livro prazeroso para quem gosta de inteligentes homenagens aos clássicos. Também dá acesso, com sorte, a uma das mais belas constatações que a literatura permite: a de que as pessoas são, internamente, muitas coisas, nem inteiramente boas ou más. O cinza prevalece.
Mais do que isso. Em um país em que cada vez mais julgamentos rápidos e sumários são a regra, o exercício de tentar entender as razões do outro, síntese deste Hyde, é cada vez mais necessário.
PS: Obviamente, o leitor vai reconhecer todos os truques narrativos, homenagens e releituras do livro de Levine apenas se conhecer o original de Stevenson que, felizmente, foi incluído pela Record na edição brasileira de ‘Hyde’.