A brincadeira começa no título: ‘Kaminski e Eu’, quase um ‘Kandinsky e Eu’. O jogo de nomes é esperto já que, como o famoso pintor real, o inventado para o filme de Wolfgang Becker – que fez parte da programação da última Mostra de Cinema de São Paulo -, Kaminski, é apresentado como uma das referências artísticas do século XX. Amigo de Picasso e pupilo de Matisse, nosso gênio revolucionário é mostrado no início do longa, por meio da eficiente alteração de filmagens reais, participando da Pop Art, em Nova York, sendo pintado por Andy Warhol, e até posando ao lado dos Beatles.
Para dar uma virada em uma carreira até então medíocre, caberá ao jornalista fanfarrão e oportunista vivido por Daniel Brühl escrever a biografia do velho mestre, agora recluso, com a filha, nos alpes europeus.
Se até aí Wolfgang Becker tratou de construir o mito do artista como alguém que está além e acima de seus pares, que conhece segredos e técnicas que o rés da humanidade não pode alcançar, todo o resto do filme parece ter como objetivo desconstruir esse lugar comum.
Desconstrução que começa, por exemplo, no próprio Kaminski: isolado, dominado pela filha, aparentemente cego, ele tem por amigos, como o jornalista vai descobrir em um jantar surreal e hilário, figuras folclóricas, que lembram seu passado de glórias e agem como aqueles artistas performáticos dos quais gostamos de dar risada, até por não entender bem o que eles estão querendo dizer.
Mais pragmático, e procurando uma grande revelação sobre a vida pessoal de Kaminski, algo que possa fazer de sua biografia um best-seller, o personagem de Brühl tenta de tudo: espiona a casa em busca de segredos obscuros e quadros originais do mestre, suborna a empregada e chega a posar ao lado do pintor, que, aparentemente cego, não percebe.
Até então quase uma comédia, o longa muda para um road movie quando o velho artista, aproveitando a ausência da filha, parte com o jornalista em busca de um antigo grande amor, que vive longe, em uma cidade do litoral.
À caminho da casa da amada, a quem ele não via há anos, a dupla acaba visitando uma exposição de arte. Apesar de Kaminski ser reverenciado por todos como um ídolo do século XX, o público presente à mostra não sabe mencionar o nome de nenhuma de suas obras. A crítica do filme é clara: está se festejando de fato a grande arte ou apenas o mito por trás do artista? A essência ou a aparência?
Como é comum aos road movies, a viagem empreendida pela dupla, repleta de incidentes engraçados, vai implicar também em descobertas e transformações. Dessa forma, a relação entre Kandinski e o pretenso biógrafo, de início utilitária e superficial, passa a ser de iguais. Sem o filtro da idolatria, o personagem de Brül consegue, aos poucos, enxergar no velho mais do que uma fonte para o seu livro ou alguém que pode lhe trazer riqueza e reconhecimento público.
Mais que isso, o filme, se critica o mito do artista como predestinado à grandeza, com qualidades inatas e sobrenaturais, tenta resgatar a essência fundamental da arte. Assim, por exemplo, Kaminski, em meio a uma conversa banal, insiste em demonstrar ao companheiro de viagem que também ele pode produzir arte. O jornalista descobre ali, ao desenhar de forma descompromissada um retrato, que a excelência artística é, como é óbvio, muito humana, não nasce de alguma qualidade super-humana. É o filme gritando ao expectador, de forma singela e poética, uma verdade muitas vezes esquecida: todos podem produzir arte. Os grandes artistas, aqueles cujas obras se sobressaem, são os que têm consciência disso.
Como é fácil de antecipar, a existência desse amor puro e absoluto, que o velho busca reencontrar, da mesma forma será colocado em xeque com a conclusão da viagem. Como a arte, o diretor parece nos dizer, o amor é uma expressão das relações humanas e, portanto, fadada a erros. Como a arte, esse sentimento é autêntico e forte apenas quando visto como algo concreto e não idealizado.
Respostas de 2
O filme é simplesmente lindíssimo! O que se mostra superficial, meio louco e até cômico de início, aprofunda-se e atinge alto grau de sensível humanidade. É um filme sobre transformações e crescimento emocional que encontra no amor e no respeito suas raízes. Vale a pena assistir!
achei a crítica e descrição do filme muito boa, real; você Alexandre Postigo, captou a essência do filme e traduziu bem em suas palavras!