
Quando alguém se vale da palavra ‘grotesco’ para descrever alguma coisa, é comum nos remetermos a tudo que foge a algum tipo de padrão. Estranhamento, desconforto e aversão são outras sensações que podem acompanhar o termo. Dada a definição, não é surpresa que o leitor contemporâneo, após ler o conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, se valha da expressão ‘grotesca’ para classificar a escravidão.
Entretanto, neste Dia da Consciência Negra, 20 de novembro, é sempre bom lembrar que, por centenas de anos, a prática da escravidão não era considerada grotesca no Brasil, ou seja, algo fora do padrão dos comportamentos aceitáveis. Negros, homens e mulheres, serem tratados como propriedades era, ao contrário, a regra, o modelo de sociedade ideal.
“Pai contra mãe” é um conto sobre escravidão, e dos mais amargos, porque de um realismo dolorosamente sincero e livre de adornos sentimentais. Publicado em 1906, no livro “Relíquias da Casa Velha”, pouco mais de dez anos após do fim da escravidão, o conto é de ‘rasgar o fígado’ até mesmo de vozes que insistem, ainda hoje, em jogar atenuantes na prática da escravidão no Brasil.
No enredo temos, de um lado, Cândido Neves, pai, capitão do mato, que vê na captura de uma escrava fugida a salvação do próprio filho recém-nascido. Na outra ponta, Arminda, escrava, fugida, e que, prestes a dar à luz, fará de tudo para conquistar a liberdade.
Até aí, a genialidade do título e do enredo não se fazem tão evidentes. Apenas a experiência da leitura do conto é capaz de conferir à escravidão sua real dimensão grotesca e, ao mesmo tempo, refletir com precisão a imagem da sociedade brasileira em dois tempos: aquela que cultivou a prática escravocrata e a nossa, de 2017, que mantém vivos seus malefícios sob um véu de hipocrisia.
É por isso que “Pai contra mãe” é uma leitura obrigatória para quem não tem medo de sair da zona de conforto, diante daquele tempo e do nosso tempo. Sem realizar contorcionismos literários, sua ironia sincera não deixa brechas para fugir do enfrentamento.
A realidade grotesca da escravidão se apresenta logo no início do texto, quando o narrador descreve alguns utensílios de repressão comumente utilizados em escravos fujões. Sobre um deles, uma espécie de máscara de ferro que impedia a alimentação e era utilizada para afastar o vício da cachaça, que segundo os senhores conduzia o escravo ao roubo, a ironia de Machado é precisa: “Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel.”
Por essa e muitas outras passagens “Pai contra mãe” é um convite à reflexão, não apenas sobre escravidão, não apenas sobre preconceito, mas sobre nós e como reagimos, ainda hoje, às formas de opressão e suas engrenagens.
Uma resposta
Pai contra mãe reflete bem a que ponto o ser humano pode chegar.
Outro conto sobre o tema é Bons dias que fala do alforriado Pancrácio. Num tom mais sarcástico.