Todas as cartas de amor são, como já afirmou um grande poeta, ridículas? Quem termina de ler ‘Carta a D. – História de um amor’, de André Gorz, pseudônimo de Gerhard Horst, jornalista, filósofo e sociólogo austríaco radicado na França, tem a nítida impressão que não.
No livro, publicado originalmente em 2006, Gorz narra sua vida com Dorine, sua companheira por quase sessenta anos, desde que se conheceram em Lausanne, na Suíça, em 1947.
Um dos grandes expoentes do marxismo-existencialista francês do pós-guerra, seguidor de Jean Paul Sartre e uma das principais referências teóricas para os estudiosos do trabalho e do sindicalismo, Gorz mostra em sua carta que, por trás de tudo isso e de todos os livros que publicou, está sua parceria e cumplicidade de uma vida com Dorine.
Tragicamente, a consciência de que a relação com sua companheira foi, em suas palavras, “a reviravolta decisiva que me permitiu desejar viver”, surgiu tardiamente, quando Dorine se encontrava consumida pela doença e pela dor.
O livro nasce, então, antes de tudo, como um pedido de desculpa e como uma tentativa de resposta a uma questão que atormenta Gorz: “Por que você está tão pouco presente no que escrevi, se a nossa união é o que existe de mais importante na minha vida?”.
Tipicamente, o sociólogo Gorz passa a procurar de forma sistemática, em meio ao relato de seus anos juntos, explicações para essa falta fundamental com quem sempre esteve ao seu lado. Seriam as convicções marxistas que trazia arraigadas em sua alma e que lhe diziam que o amor romântico e o casamento são criações ideológicas pequeno burguesas? Ou a resposta teria sua origem em algo muito menos nobre, como o orgulho de não querer dividir com mais ninguém suas conquistas, seus prêmios, a repercussão de seus livros?
Todas essas hipóteses são levantadas nesse exercício intelectual fascinante que, contraditoriamente, procura entender algo imaterial e, muitos dizem, anti-intelectual por natureza, o amor.
Seja como for, se encontra a resposta ou não para suas preocupações, o livro parece nos dizer, e é isso que fica, que um homem pode ser feliz e se sentir pleno ao dividir sua existência com uma outra pessoa. Essa é uma mensagem revolucionária em tempos de relações fluídas e tão duradouras quanto a vida útil de um meme na internet.
Não querendo permanecer no mundo sem sua companheira, que padecia de uma doença degenerativa, Gorz cometeu suicídio, ao lado de Dorine, no dia 22 de setembro de 2007, em Vosnon, na França.
‘Carta a D. – História de um amor’ foi publicada no Brasil em 2012, pela Editora Cosacnaify.